quarta-feira, 29 de junho de 2011

DEFICIENTE, O QUE É UM DEFICIENTE?




Faz um mês que participo do Projeto Rompendo Barreiras na UERJ que tem como objetivo a inclusão de pessoas portadoras de deficiência visual ou baixa visão, tem sido estimulante trabalhar com a equipe liderada pela prof. Valéria Oliveira, e o trabalho tem me levantando questões para reflexão muito importante.
A problemática da deficiência não me é de todo estranha, meu marido é portador de deficiência física decorrente de um acidente com arma de fogo, tenho acompanhado o processo de inclusão social do meu esposo, principalmente a laboral de perto, e sempre fazemos algumas observações e criticas a esta tal “inclusão”.
Primeiro porque a cidade e os meios de transportes não estão preparados para dar acessibilidade ao portador de deficiência, o que nos remete ao um fato simples: ele não tem meios adequados para chegar ao seu local de trabalho.
Segundo poucos são os portadores de deficiência qualificados profissionalmente para serem absorvidos no Mercado de Trabalho, e pergunta-se onde esta o hiato entre os programas de qualificação e os seus destinatários: divulgação, localidade, locomoção, renda, ensino?
Terceiro, a carga horária é diferenciada e o salário menor, ora se quero incluir alguém devo fazê-lo plenamente, com todos os direitos e deveres, e fica pergunta por que a carga horária e o salário do portador de deficiência são menores do que os dos seus colegas de trabalho?
Contudo, meu pensamento não são apenas essas questões, mas, a própria representação da pessoa deficiente, que podemos analisar pela própria essência da palavra, assim define o Aurélio: deficiência s. f.Imperfeição, falta, lacuna.
A palavra remete ao estado de imperfeição, a alguém que possui uma lacuna ou tem falta de alguma coisa, a palavra é plena em significado negativo, daquilo que é mal, ou que carrega em si uma carga imperfeita e dessa forma imprestável para a sociedade.
Em tempos primitivos uma deficiência acarretava certamente à morte devido a necessidade de sobrevivência, o nomadismo, a garantia de perpetuação da espécie, em tempos que a força física se fazia necessária para a manutenção do grupo, mas, podemos dizer isso hipoteticamente, não há garantias se os grupos cuidavam de entes deficientes como os doentes e idosos.
Nas civilizações antigas, o Egito foi a que deu lugar e destaque aos deficientes, há a foto de um anão tocando um instrumento e uma escrita onde podemos ver um cego em seu cotidiano. A medicina egípcia também se importava quanto à cura ou terapia de pessoas com deficiência.
Evidências arqueológicas nos fazem concluir que no Egito Antigo, há mais de cinco mil anos, a pessoa com deficiência integrava-se nas diferentes e hierarquizadas classes sociais (faraó, nobres, altos funcionários, artesãos, agricultores, escravos). A arte egípcia, os afrescos, os papiros, os túmulos e as múmias estão repletos dessas revelações. Os estudos acadêmicos baseados em restos biológicos, de mais ou menos 4.500 a.C., ressaltam que as pessoas com nanismo não tinham qualquer impedimento físico para as suas ocupações e ofícios, principalmente de dançarinos e músicos.(Gurgel, http://www.ampid.org.br)
Contudo a sociedade romana não admitia a deficiência física, sendo mortas as crianças que assim nascessem e deixados na miséria soldados que retornavam ao campo de batalha mutilados.
As leis romanas da Antiguidade não eram favoráveis às pessoas que nasciam com deficiência. Aos pais era permitido matar as crianças que com deformidades físicas, pela prática do afogamento. Relatos nos dão conta, no entanto, que os pais abandonavam seus filhos em cestos no Rio Tibre, ou em outros lugares sagrados. Os sobreviventes eram explorados nas cidades por “esmoladores”, ou passavam a fazer parte de circos para o entretenimento dos abastados. (GURGEL, http://www.ampid.org.br)
Em Esparta, o destino de crianças deficientes era o mesmo do que de Roma, visto a sociedade Espartana ser completamente voltada para a guerra, os esportes e o culto ao corpo perfeito.
Em Atenas apenas os que se dedicavam a vida de contemplação filosófica pareciam gozar de alguma aceitação, escravos, trabalhadores e mulheres que já eram tidos como inferiores, eram mais inferiores ainda em casos de deficiência. Apesar do mito de Tirésias:
Enquanto passeava, Tirésias encontrou duas serpentes em cópula, as quais atingiu com o seu bordão. Uma tal ação enfureceu Hera, que decidiu transformar o seu perpetrador em mulher. A partir daqui, são diversas as versões do mito, com algumas a mencionarem Tirésias como uma famosa prostituta, enquanto que outras a referem como uma sacerdotisa de Hera. Eventualmente, esta figura encontrou outras duas serpentes em cópula, e pelas suas novas ações voltou ao seu sexo original.
Mais tarde, Zeus e Hera tiveram uma curiosa discussão, relativa à que sexo tira mais prazer do ato sexual. Hera mostrou-se simpatizante pelo lado masculino, enquanto que Zeus referia o sexo feminino como o mais feliz nessa questão, e pela sua experiência única decidiram chamar Tirésias. Ainda desprovido dos seus famosos dons, este habitante de Tebas proferiu uma curiosa idéia - "das dez partes do prazer, o homem apenas tem uma" - a qual exaltou a ira de Hera, que o cegou. Para compensar tal ato, Zeus deu a este homem o dom da profecia, que seria um dos mais famosos da Grécia Antiga.(extraído de http://mitologia.blogs.sapo.pt em 07/04/11 as 17.35).

Contudo a Atenas filosófica e não mais mitológica só concebia um lugar ao deficiente, o de pensador, desde que sua deficiência não o impedisse de ler.
No judaísmo o deficiente era visto como um pecador ou filho de pecadores. Sacerdotes deficientes não podiam chegar ao Santo dos Santos. Jesus reverteu essa lógica, no caso de um cego de nascença que vivia no templo medingando, fez uma distinção muito clara que nem ele e nem os pais haviam pecado, mas, que sua cegueira era para manifestação da Glória de Deus, após a cura do cego, Jesus fez clara distinção entre a cegueira física e a cegueira espiritual.
Levados por esses ensinamentos de Jesus, os apóstolos e a Igreja do primeiro século, tendiam a serem caridosas com os deficientes. Quando o evangelho penetrou na sociedade romana a cultura de matar os deficientes ou deixá-los sem amparo foi mudada.
Em Alexandria foi criada a primeira universidade de estudos filosóficos e teológicos de grandes mestres. Dentre eles, Dídimo, o Cego, conhecia e recitava a Bíblia de cor. No período em que começava a ler e escrever aos cinco anos de idade, Dídimo perdeu a visão mas, continuou seus estudos, tendo ele próprio gravado o alfabeto em madeira para utilizar o tato.
As Constituições romanas do Imperador Leão III havia a previsão da pena de vazar os olhos ou amputar as mãos dos traidores do Império. Há registros de que os índices de criminalidade baixaram. Esta pena foi praticada até a queda do Império Romano e continuou sendo aplicada no Oriente
A Idade Média, onde a bíblia recebeu interpretações extremamente equivocadas a deficiência voltou a ser estigma de pecado.
A população ignorante encarava o nascimento de pessoas com deficiência como castigo de Deus. Os supersticiosos viam nelas poderes especiais de feiticeiros ou bruxos. As crianças que sobreviviam eram separadas de suas famílias e quase sempre ridicularizadas. A literatura da época coloca os anões e os corcundas como focos de diversão dos mais abastados. (Gurgel, http://www.ampid.org.br)
Em religiões onde se acredita em Carma ela é vista como “pagamento de erros passados” ou “sofrimento para purificação da alma”, e assim levar o indivíduo a evolução. O rei Luís IX fundou o primeiro hospital para pessoas cegas,
Com o advento do capitalismo e a necessidade de mão de obra para a produção o deficiente passou a ser visto como um estorvo, pois não estaria apto a fazer parte da cadeia produtiva, para o detentor dos meios de produção não servia como mão de obra e para a família não produzia e consumia o que era produzido pelo grupo.
São dessa época que as Santas Casas de Misericórdia e os asilos vão recolher diversos tipos de deficientes a fim de lhes fazer caridade, numa protoforma das primeiras ações assistenciais junto a este publico.
Nas famílias burguesas o nascimento de uma criança deficiente era um escândalo em sua maioria, sendo a criança confinada com babás e escondida de outros membros da família ou amigos, ou depositadas na roda dos expostos. O marido sempre culpava a mulher pelo filho deficiente e a situação era vista como uma mácula ao bom nome familiar, principalmente se a deficiência fosse de origem mental.
Mas, algumas iniciativas pioneiras são dessa época, com o iluminismo e as descobertas científicas. Gerolamo Cardomo, médico e matemático criou um código para ensinar pessoas surdas a ler e escrever, influenciando o monge beneditino Pedro Ponce de Leon, desenvolveu um método de educação para pessoa com deficiência auditiva, por meio de sinais. Esses métodos contrariaram o pensamento da sociedade da época que não acreditava que pessoas surdas pudessem ser educadas. Já na Inglaterra John Bulwer defendeu um método para ensinar aos surdos a leitura labial, além de ter escrito sobre a língua de sinais.
Juan Pablo Bonet na Espanha, em 1620 escreveu sobre as causas das deficiências auditivas e dos problemas da comunicação, condenando os métodos brutais e de gritos para ensinar alunos surdos. No livro Reduction de las letras y arte para ensenar a hablar los mudos, Pablo Bonet demonstra pela primeira vez o alfabeto na língua de sinais.
Ambroise Paré (1510-1590), médico francês do Renascimento, aperfeiçoou os métodos cirúrgicos para ligar as artérias, substituindo as cauterizações com ferro em brasa e com azeite fervente. Foi grande a sua contribuição na criação de próteses
Martinho Lutero, um dos pioneiros do protestantismo, afirmava que pessoas deficientes não possuíam natureza humana e eram usadas por maus espíritos, bruxas, fadas, duendes e que deviam ser afogadas.
Durante os séculos XVII e XVIII houve grande desenvolvimento no atendimento às pessoas com deficiência em hospitais. Havia assistência especializada em ortopedia para os mutilados das guerras e para pessoas cegas e surdas.
Philippe Pinel foi o pioneiro na explicação que pessoas com perturbações mentais deveriam ser tratadas como doentes, ao contrário do que acontecia na época, quando eram trados com violência e discriminação.
No Século XIX, em 1819, Charles Barbier (1764-1841), um capitão do exército francês, atendendo a um pedido de Napoleão, desenvolveu um código para ser usado em mensagens transmitidas à noite durante as batalhas. Em seu sistema uma letra, ou um conjunto de letras, era representado por duas colunas de pontos que por sua vez se referiam às coordenadas de uma tabela. Cada coluna podia ter de um a seis pontos, que deveriam estar em relevo para serem lidos com as mãos. O sistema foi rejeitado pelos militares, que o consideraram muito complicado.
Barbier então apresentou o seu invento ao Instituto Nacional dos Jovens Cegos de Paris. Entre os alunos que assistiram a apresentação encontrava-se Louis Braille (1809- 1852), então com quatorze anos, que se interessou pelo sistema e apresentou algumas sugestões para seu aperfeiçoamento. Como Barbier se recusou a fazer alterações em seu sistema, Braille modificou totalmente o sistema de escrita noturna criando o sistema de escrita padrão – o BRAILLE – usado por pessoas cegas até aos dias de hoje.
O Século XIX, ainda com reflexos das idéias humanistas da Revolução Francesa, ficou marcado na história das pessoas com deficiência. Finalmente se percebia que elas não só precisavam de hospitais e abrigos, mas, também, de atenção especializada. É nesse período que se inicia a constituição de organizações para estudar os problemas de cada deficiência. Difundem-se então os orfanatos, os asilos e os lares para crianças com deficiência física. Grupos de pessoas organizam-se em torno da reabilitação dos feridos para o trabalho, principalmente nos Estados Unidos e Alemanha.
Apesar dessas iniciativas, a deficiência, ou a pessoa portadora com deficiência era vista como um estorvo, tanto que era isolada em um asilo ou orfanato, devido a pessoa com deficiência ter uma representação negativa, de pessoa “de menos”, necessitada de caridade, digna de pena, “o coitadinho”. Mas, o que é uma representação social?
Representação social é uma categoria de analise usada por Serge Moscovici, um psicólogo social, e procura tornar familiar aquilo que não conhecemos.
"As representações que nós fabricamos – duma teoria científica, de uma nação, de um objeto, etc – são sempre o resultado de um esforço constante de tornar real algo que é incomum (não-familiar), ou que nos dá um sentimento de não-familiaridade. E através delas nós superamos o problema e o integramos em nosso mundo mental e físico, que é, com isso, enriquecido e transformado. Depois de uma série de ajustamentos, o que estava longe, parece ao alcance de nossa mão; o que era abstrato torna-se concreto e quase normal (...) as imagens e idéias com as quais nós compreendemos o não-usual apenas trazem-nos de volta ao que nós já conhecíamos e com o qual já estávamos familiarizados (Moscovici, 2007, p.58)"

Como pudemos perceber a representação social da pessoa deficiente é negativa, daquele que era pecador, amaldiçoado, alguém desprezado ou alvo da caridade bondosa e não pessoa, sujeito de direitos.
Apesar dos avanços alcançados, principalmente no Brasil, com o estatuto da pessoa com deficiência, Lei 7699/6 que em seus direitos fundamentais assim determina: no Art. 11. A pessoa com deficiência tem direito à proteção à vida, mediante efetivação de políticas sociais públicas que permitam o nascimento e o desenvolvimento sadio e harmonioso, em condições dignas de existência.
Hoje falasse muito em inclusão, a TV mostra em horário nobre a historia comovente de uma cadeirante, estimulasse ao esporte, o governo pressiona as empresas privadas com a Lei de Cotas para pessoa com deficiência, mas, não podemos esquecer que numa época de capitalismo global, em que necessitamos de aumento do consumo e principalmente na área tecnológica onde há grandes investimentos em próteses e orteses.
Contudo, a pessoa com deficiência ainda é representada negativamente, invisível na cidade sem acessibilidade, no transporte publico de qualidade baixa que sempre cheio impossibilita a locomoção, a escola publica, ainda despreparada para receber e ensinar com qualidade seus alunos chamados “especiais”.
Na verdade a inclusão é a constatação da exclusão. Que a sociedade exclui, torna invisível, coloca para debaixo do tapete esses “incômodos” seres “de menos” que os desafia e mostra a vulnerabilidade humana.
A deficiência uma construção social, uma representação que fazemos de pessoas que não vêem, não ouvem, não se locomovem, não pensam e não aprende como nós, porque nos tomamos como a medida de todas as coisas.
O corpo humano, esse extraordinário e maravilhoso corpo humano se reorganiza para que a pessoa com deficiência continue a viver e desenvolver-se. Assim o deficiente auditivo “ouve” com a pele e com os olhos, o deficiente visual “vê” com a audição, o tato, o olfato, o deficiente físico encontra formas de equilibrar o corpo, quem não conhece a mulher que sem braços fazia todos seus afazeres domésticos com seus pés? Ou o filme estrelado por Daniel Day – Lewis “Meu Pé Esquerdo” que conta a historia de um jovem que nasce com paralisia cerebral numa família irlandesa pobre e se torna pintor e escritor utilizando apenas seu pé esquerdo? O deficiente intelectual aprende através de outras formas e o deficiente mental “percebe” outra realidade diferente da nossa, mas, todos eles continuam sendo seres humanos com todas as suas potencialidades e capacidades.






http://www.ampid.org.br
MOSCOVICI, S. Representações sociais: investigações em psicologia social. Rio de Janeiro, Vozes, 2003.

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